Medellín: seu contexto em 1968 e sua relevância 50 anos depois (II)

Na noite do primeiro dia do VI Colóquio de Teologia e Pastoral, 07/05/2018, o teólogo e historiador da Igreja, Prof Dr. Pe. José Oscar Beozzo, proferiu a Conferência de Abertura, no auditório Dom Helder Camara, da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia.

A seguir, a síntese elaborada pelo prof. Edward Guimarães, das três últimas partes do texto: BEOZZO, José Oscar. “Medellín: seu contexto em 1968 e sua relevância 50 anos depois” in: GODOY, Manoel; AQUINO JÚNIOR, Francisco. 50 anos de Medellín. Revisitando textos, retomando o caminho. São Paulo: Paulinas, 2017, pp. 09-27.

26231276_10215065515213537_964812961710004727_n

Medellín: seu contexto em 1968 e sua relevância 50 anos depois

(2ª Parte)

31961647_822372154618469_6112538210888318976_o
José Oscar Beozzo – Conferência de abertura do VI Colóquio de Teologia e Pastoral, 07/05/2018.

III – Nos 30 anos, uma enquete entre seus protagonistas

Por ocasião dos 30 anos de Medellín, num encontro realizado em Riobamba, no Equador, em agosto de 1998, e destinado a comemorar a vida e obra de Mons. Leonidas Proaño (1910-1988), foi feita uma pesquisa entre os cerca de setenta bispos e teológos participantes sobre o significado de Medellín e os elementos fortes que promoveu para a vida da Igreja da América Latina. Dentre o conteúdo recolhido, merece destaque:

  • Medellín foi o momento em que adquiri ou vivi o que significa “eu creio na Santa Igreja Católica, Apostólica e Romana”… foi algo mais que uma tradução do Concílio para nosso continente: foi a emergência de uma Igreja Latino-americana madura e iluminadora… Se viveu o testemunho dos evangélicos que participaram não somente com respeito, mas com uma experiência de comunhão, de modo que pediram, com argumentos, poder receber a eucaristia na celebração de encerramento… Mas seus elementos mais fortes foram o pronunciamento sobre a opção pelos pobres, a claridade sobre o significado da violência e o pronunciamento sobre a justiça. (Samuel Ruiz, bispo de San Cristóbal de las Casas, em Chiapas, no México).
  • Medellín confirmou algumas opções que já tínhamos feito como membro da Igreja chilena: assumir a responsabilidade social e política da Igreja, dar apoio e participar da luta pela reforma agrária, fazer a opção pelas Comunidades Eclesiais de Base, promover a inserção da vida religiosa no meio dos pobres, adotar um estilo de vida próximo e simples pelos bispos, não condenar aberta e previamente a Unidade Popular (Frente esquerda de partidos políticos que elegeram o presidente Salvador Allende em 1970, governo que foi derrubado pelo golpe militar de Pinochet em 1973)… Medellín nos fez tomar consciência da realidade do continente, abrindo-nos as portas para uma análise mais profunda e estruturada da realidade de dependência dos países do terceiro mundo, das formas de violência e para a necessidade de uma educação libertadora. (Pe. Sérgio Torres, colaborador de Mons. Manuel Larrain, bispo de Talca, no Chile, exilado por muitos anos pela ditadura militar de Pinochet, padre de periferia na capital Santiago, professor de teologia e um dos fundadores da Associação Ecumênica de Teólogos do Terceiro Mundo – ASETT/ EATWOT).
  • Medellín foi a oportunidade, para o episcopado e suas Igrejas, de repensar o Vaticano II dentro do contexto continental, situar melhor a análise, a reflexão teológica e as propostas pastorais… Medellín foi uma tentativa de olhar a Igreja desde o seu lugar social, dos meios populares (indígenas, afro-americanos, camponeses, empobrecidos) e convocar os cristãos para uma ação pastoral transformadora. Foi um esforço de latino-americanizar o Concílio Vaticano II, uma busca de um rosto de Igreja mais encarnada e de um pluralismo eclesial em gestação. Suscitou, pelo Espírito Santo, profecia e criatividade, dando um passo oficial para uma evangelização incultura, que não prioriza a reprodução da cristandade, mas abre para uma Igreja Popular. Suscitou as CEBs e ensaiou uma nova pedagogia eclesial própria de pequenas Igrejas vivas na Base, com leitura popular da Bíblia e liturgia criativa, participativa e inculturada na realidade do povo. (Dom Antônio Fragoso, bispo de Crateús, no Ceará, entre 1964-1998).
  • Medellín teve uma influência de irrupção do Espírito de Deus, com muita clareza sobre a oportunidade para nosso continente das perspectivas do Vaticano II, sobretudo no que toca o mundo os pobres. Medellín foi uma esperança indestrutível de futuro da Igreja a serviço deste continente. Significou também o reconhecimento da América Latina como um lugar de anúncio do Evangelho para o mundo, a partir do potencial evangélico dos índios, dos negros e dos camponeses. Dentre seus elementos mais fortes merece destaque a forma da opção pelos pobres, a força da evangelização que tomou lugar prioritário com relação aos sacramentos ou à sacramentalização, a Palavra de Deus retomou seu lugar primitivo influenciando a liturgia e a vida da comunidade, a conscientização do povo oprimido na linha da própria libertação. (Dom Tomás Balduíno (1922-2014), bispo de Goiás, entre 1967-1988), um dos fundadores do Conselho Indigenista Missionário – CIMI e da Comissão Pastoral da Terra – CPT).

 

IV – Aos 40 anos, a V Conferência de Aparecida. Sínodo ou conferência, evento episcopal ou eclesial?

Depois de Santo Domingo aconteceu o Sínodo da América, em 1997, que interrompeu a série das Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano. Quando o CELAM solicitou uma nova Conferência para o início do novo milênio que permitisse a Igreja da América Latina e do Caribe refletir sobre as novas circunstâncias e propor o rumo de sua caminhada, a resposta do Cardeal Angelo Sodano, secretário de Estado foi dura e direta: um Sínodo, sim; uma Conferência, não. Sínodo em Roma, sim; na América Latina, não, devido à saúde do Papa, que gostaria de participar.

O CELAM levou a questão diretamente ao papa João Paulo II, reafirmando o desejo de se realizar uma V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. O Papa solicitou uma consulta aos cardeais latino-americanos e as Conferências episcopais do continente. Resultado: 18 dos 30 cardeais e 21 das 22 Conferências episcopais manifestaram a opção pela Conferência e não pelo Sínodo. O Papa determinou, então, que se seguisse a tradição da Igreja latino-americana.

Esta tradição inaugurada com Medellín, que não tem outra similar na África, Ásia e Europa, forjou um modelo de exercício da colegialidade de caráter deliberativo, mais próximo de um Concílio Ecumênico do que de um Sínodo apenas consultivo.

Manter esta tradição é crucial  para a América Latina, mas também para a Igreja universal, no sentido de que floresçam, em comunhão com a Sé romana, as igrejas locais, com sua pastoral, sua teologia, seu magistério e instrumentos próprios, cada vez mais enraizados e inculturados na realidade de cada região e do continente.

Com todos os atrasos e com a morte de João Paulo II, a V Conferência prevista para Quito, no Equador, e depois para Buenos Aires, na Argentina, veio, por decisão do novo papa, Bento XVI, para Aparecida, no Brasil.

A realização num santuário mariano de grande afluxo popular provocou alterações significativas: as celebrações durante o evento foram na grande Basílica e abertas ao povo. Essa nova situação provoca a reflexão sobre o caráter teológico de uma Conferência Episcopal: ser um evento não apenas episcopal, mas profundamente eclesial, ou seja, que a dinâmica de sua preparação, de seu desenrolar e de sua recepção interessam e envolvem a participação de todo o povo de Deus, e não apenas do corpo episcopal.

 

V – Povo de Deus, colegialidade, conciliaridade, ecumenicidade e Reino de Deus

A forma de compor a Assembleia de Aparecida explicita cinco verdades eclesiais de grande importância:

  1. Que o bispo é sempre bispo de uma porção do povo de Deus, de uma Igreja particular à qual está unido, em comunhão com os demais bispos e com o bispo de Roma, com os quais compartilha a solicitude de todas as Igrejas;
  2. Que em uma Conferência pode acontecer a forma rica e mais completa de colegialidade episcopal, a deliberativa, e não apenas a consultiva, como nos sínodos;
  3. Que em uma Conferência, pode brilhar de forma eminente a catolicidade e a conciliaridade da Igreja, guiada pelo Espírito Santo. Desde a Conferência do Rio de Janeiro, os presidentes das Conferências Episcopais de outros países são convidados a participar, bem como das Conferências Continentais. Em Aparecida, por exemplo, participaram os presidentes das Conferências Episcopais do Canadá, Estados Unidos, Espanha, Filipinas, Portugal e das Conferências Continentais da África, Ásia e Europa. Desde a II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, a de Medellín, o Papa faz a abertura solene e confirma o evento com o selo do ministério de Pedro. O papa Paulo VI fez a abertura de Medellín; João Paulo II fez a de Puebla e a de Santo Domingo, e Bento XVI fez a de Aparecida. O local e o universal se dão as mãos num momento eclesial tão importante.
  4. Há apenas uma única Igreja de Cristo que subsiste, como diz o Vaticano II, na Igreja Católica, mas que está também nas outras igrejas da unidade. O ecumenismo é nota essencial da Igreja de Jesus Cristo e a busca da unidade, um mandamento solene do Senhor. Assembleias, Conferências, Sínodos e Concílios de uma Igreja cristã interessam de perto às demais igrejas cristãs, todas elas partes do mesmo e único corpo de Cristo. Por isso são sempre convidados observadores fraternos das outras igrejas cristãs.
  5. A Igreja não existe para si, mas para os outros e para a salvação e libertação do mundo, pois está destinada, em sua missão, a seguir os passos de Jesus, no anúncio e implantação do Reino de Deus. Anunciar e instaurar o Reino de Deus, reino de justiça e de paz, de fraternidade e de solidariedade foi o propósito de Jesus e deve ser o de sua Igreja, continuadora de sua obra.

 

Prof. Edward Guimarães

Secretário Executivo do Observatório da Evangelização

 

Parte I

https://atomic-temporary-74025290.wpcomstaging.com/2018/05/08/medellin-seu-contexto-em-1968-e-sua-relevancia-50-anos-depois/